Uma carta de JOSÉ MÁRIO BRANCO, músico e poeta, mas também um homem atento sobre o turbilhão social. Uma carta que vale a pena ler e reflectir para agir. Uma reflexão critica sobre movimentos sociais, como o 15O, com a qual estou de acordo!
José Mário Branco, músico e
poeta
Tenho acompanhado com interesse, evidentemente, todas as tentativas e
experiências que têm vindo a ser feitas por todo o mundo na sequência da
"primavera" do Cairo. Mas na minha experiência há um sarro do
passado.
Meti-me na política aos 17 anos, estive preso pela PIDE, fugi para França em
1963 e voltei em 1974. Desde 64-65 e até há poucos anos, estive sempre ligado à
extrema-esquerda de inspiração maoista. Como não sou realmente um político, mas
sim músico, letrista e cantor, nessas pertenças e fidelidades fui sempre guiado
por duas coisas:
- os grandes valores que, num artista, naturalmente convocam um lastro de
radicalidade e, por outro lado,
- a fidelidade a homens políticos cujos escritos e posições públicas me foram
parecendo melhor exprimir politicamente essa radicalidade.
O que me levou a ir entrando e saindo de colectivos onde me sentia em casa. Mas
como afirmei pouco antes de deixar o último, que ajudei a fundar: "eu
nunca saí de partido nenhum, os partidos é que foram saindo de mim".
As organizações políticas em que participei foram saindo de mim por duas razões
principais, e supostamente opostas embora me pareça que são a mesma razão com
sinais inversos, razões essas que nada têm de novas porque já vêm desde o
último quartel do séc. XIX:
- ou perderam em radicalidade o que ganharam em "realismo", que é o
eufemismo que usam para designar a capitulação e a adaptação ao capitalismo;
- ou se confinaram e estiolaram em pequenos grupúsculos, seitas e partidecos
que, perdendo o contacto com o real, se satisfazem autofagicamente a proclamar
verdades definitivas, directivas infalíveis para as massas e são totalmente
incapazes de viverem hoje do modo como dizem querer que seja a sociedade de
amanhã, prefigurando-a desde já em si mesmos.
A história da Praça Tahrir é diferente, e eu, que vivi o Maio 68 em Paris e o
PREC em Portugal, regozijei-me, como toda a gente de bem, por mais uma queda de
um ditador conseguida pelo clamor e pela coragem das ruas. Tempos novos, formas
de luta novas.
Tenho tentado reflectir sobre isso e o seu alcance, à luz da única coisa que
mantenho bem viva: a minha recusa da iniquidade do capitalismo, a minha
exigência de "outra coisa" que "essa é que é linda" (ver,
por exemplo, http://passapalavra.info/?p=40478).
Mantenho também um interesse continuado - mas forçosamente à distância - pelos
poderosos movimentos sociais de base do povo pobre do Brasil, da Argentina, do
México, e de outros países, que têm vindo a lutar por coisas essenciais como
terra para cultivar, tecto para se abrigar, direito à água, à cidade, ao
trabalho, ao descanso, etc.
Estes, só posso segui-los à distância porque, em Portugal, há tanto tempo que
não há nada que se pareça; o povo parece apático, cheio de medo, sem raiva nem
desconcerto, sempre bem enquadrado por uma elite de burocratas que há 30 anos o
fazem gritar que "o custo de vida aumenta, o povo não aguenta" e a
classe dominante a rir-se lá em casa respondendo "aguenta sim senhor, a
prova é que gritam o mesmo há 30 anos!".
Convenço-me de que, neste longo caminho aos sacões, deixou de haver - por muito
tempo - lugar para generalidades, para proclamações (gerais), para grandes
desígnios colectivos. Há lugar, sim, para lutar começando pelo que está perto,
pelo que está em baixo, pelo que está agora: o que está mal na minha casa, no
meu prédio, no meu bairro; o que está mal na minha empresa, onde por definição
não existe democracia, mas que é o centro da minha sobrevivência; na minha
escola, seja eu aluno (força de trabalho em formação) seja eu professor
(formador de força de trabalho), aquele o produto, este o produtor. Um período
que será longo, de lutas defensivas e de lenta reacumulação de forças. O selo
de qualidade daquilo a que se chama "lutas" é agora, para mim, a sua
concretude, porque a maior parte daqueles que se dizem militantes confundem
acção com actividade - e não é de agora.
Plataformas como a 15O são somatórios que só podem ter o peso que é, no melhor
dos casos, a soma do peso das suas parcelas. O mesmo direi do que poderão ser o
21 de Janeiro e outras datas afins. O grande erro - parece-me - é que quase
toda a gente pensa "o que é que eu vou lá buscar?", quando deveriam
pensar "o que é que eu vou lá levar?". É como nos grupos artísticos:
a criação colectiva resulta do que se vai pondo na cesta comum ao longo dos
dias, esses dias em que parece não se passar nada. É esta a minha visão,
completamente wilhelm-reichiana.
E isto passa-se mais assim nas revoltas de "classe média" do que
propriamente nas revoltas dos pobres-mesmo-pobres. E acho que percebi porquê. É
que, contrariamente aos pobres cuja vida toda é dar sem receber, as
"classes médias", que têm ainda muito a perder, não sabem como se
pratica o verso de Fernando Pessoa: "Só guardamos o que demos".
Duvido até que o compreendam. Por isso "vão lá buscar", em vez de
"irem lá levar".
Para o capitalismo, ou antes, para os capitalistas, a produção de bens
imateriais (serviços, cultura, lazer) tornou-se desde há muito uma produção em
massa para uma massa de consumidores (que são, em grande parte, os seus
produtores), como se fossem pão, detergentes, casas ou carros. Mas a
"classe média", que está a sofrer um lento processo de
proletarização, tem vindo a ser proletarizada (incluindo os profissionais
liberais - advogados, médicos, professores, artistas plásticos ou
performativos) mas ainda não teve tempo nem experiência para deixar de ser
pequeno-burguesa - individualista, idealista, socialmente apática e pusilânime.
[NOTA: eu não estou a afirmar que os proletários têm consciência proletária,
bem pelo contrário, infelizmente a esmagadora maioria deles está também
impregnada de uma cultura e de uma moral burguesa que lhes é injectada em doses
cavalares a toda a hora; mas a própria vida prática se encarrega de lhes tornar
evidente a classe a que pertencem; só que, não vislumbrado como sair disso, não
se arriscam.]
Daí que, nas acampadas, haja aquele ar de carnaval sociocultural, onde se fala
de coisas muito sérias, o que é bom, mas onde o carburante são as palavras em
si mesmas, e não o gesto. Não é radicalidade, mas sim e apenas uma
transgressão, uma aparência de radicalidade. Vou para o meio de uma praça, levo
à boca as mãos em concha e grito "Quero mudar o mundo!"; mas as formiguinhas
vão passando de lado, no seu afã de escravas; só fica, eventualmente, quem não
precisa de fazer o gesto imediato da sobrevivência. Passe a conversa à Raúl
Brandão... mas estou enganado?
O meu tema actual - que, como a palavra indica, está cheio de promessas - é o
vazio. "Le creux de la vague". Não, ainda, o súbito recuo do mar na
praia antes do tsunami, mas um intervalo côncavo de duração não mensurável
entre dois ciclos históricos. Não creio que se possa descer mais fundo, e isso
dá-me esperança. É preciso que a juventude "média" dê o salto para o
lado de lá, onde estão os pobres a sofrer, muito calados, sem (des)tino.
"Vou ao fundo da lama / Do outro lado / Do outro lado da mente / Do outro
lado da gente / Do lado da gente do outro lado / Do lado da gente que vive de
frente / Da gente que vive o futuro presente" (Margem de Certa Maneira,
1972 (!!!)).
Por isso... talvez apareça, não prometo. Estou a tratar do que está aqui perto:
fazer música e mais música, inventar novas canções, novos espectáculos, ajudar
outros músicos a serem melhores. Ler e ouvir música. Cantar de vez em quando as
canções que tenho para dar ao público. É isso.
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