Extractos da entrevista de Helena Roseta inserida na edição de hoje do
Diário de Notícias.
Acredita que o PS virou à esquerda depois do último congresso? Eu já disse, entre amigos: não sei se virou à esquerda nem se virou à direita, tenho impressão de que tem os piscas avariados. É tudo um bocado errático. De vez em quando dizem: "Agora vamos virar à esquerda." Isto não é assim!
Mas há marcas que são de esquerda. Casamentos entre pessoas do mesmo sexo, benefícios fiscais para a classe média, combate aos offshores? Isso dos benefícios fiscais para a classe média, ainda não os vi. O que vi foi uma conversa de que iriam diminuir as deduções para os ricos, mas também não sabemos muito bem o que são os ricos para o actual Governo. Até agora, o que tenho visto são os grandes benefícios dados pelo governo à banca e a grandes capitalistas, a expressão é "grandes investidores nacionais". Os factos não estão de acordo com o discurso. Seria realmente uma certa reorientação do PS saber-se, nas lutas políticas, nas lutas sociais, de que lado se está. Tenho visto o PS, muitas vezes, do outro lado. Do lado da direita, com o grande apoio da direita.
Esta crise é uma luta de classes, na sua opinião? É o regresso da luta de classes?Não é o regresso da luta de classes, mas esta crise mostra a falência completa das soluções neoliberais. O próprio Alan Greenspan, que era o presidente da Reserva Federal Americana, veio dizer, "enganei-me". Durante 20 anos, desde o Reagan, vivemos sob o dogma de que o mercado resolve tudo, e os mercados não resolvem tudo. Os mercados, quando desregulam, podem provocar problemas gravíssimos. Vimos o que aconteceu com o mercado financeiro. Para inverter isto é preciso políticas nacionais, europeias, globais. Estamos numa luta em que de um lado estão as pessoas a sofrer as consequências da crise e, do outro lado, estão as pessoas que provavelmente se aproveitaram dela. De que lado está o PS? Nem sempre tem estado do lado certo. Vejam o caso do código laboral.
Uma das marcas do discurso inaugural de José Sócrates no congresso foi a campanha negra, que ele diz existir, a propósito do caso Freeport. Acha que há aqui uma campanha negra contra o primeiro-ministro? Eu já levo muitos anos de actividade política e sei, muitas vezes, que a publicação de determinadas notícias em determinadas alturas não é completamente inocente. Isso acontece. Agora, quem está na política tem que saber viver com isso. Quem não deve não teme, e portanto, não há campanhas negras. Pode haver alturas em que a pessoa apanha com muitas notícias desagradáveis, mas tem que ser capaz de as enfrentar. Acho que uma coisa dessas não pode condicionar a actividade política. Não somos ingénuos, sabemos que essas coisas existem. Agora, no caso Freeport, não acho que tenha a ver nada com campanha negra. O que é negro no caso Freeport é o tempo que isto demorou e está a demorar. Isso é que é negro! E é negro para o País e para toda a gente. O caso Freeport é exemplar de tudo que não deve ser feito. Não deve ser feita uma aprovação de uma alteração do ordenamento de território nas condições em que aquela foi feita; não devia ter sido produzida uma decisão no tempo em que o governo estava em gestão; não deviam ter sido feitas aquelas pressas de aprovar para facilitar a situação, mesmo que o presidente da câmara assim o pedisse; nunca deveria ter sido feita a transformação do uso que não era urbano - que era um uso reservado - para a construção de um centro comercial. Há aqui uma série de erros! Se isto fosse em Espanha, ao abrigo da actual legislação que considera o crime contra o território, essa aprovação teria sido um crime! Independentemente agora de saber se houve luvas, se não houve luvas. A polícia está a investigar, o Ministério Público também, descubram as coisas. As alterações do território, feitas muitas vezes de forma muito codificada, muito pouco transparente através da administração municipal e central, e até das CCDR, sem que os cidadãos sequer se apercebam do que é que se está a passar, têm levado a que haja enriquecimentos súbitos, de pessoas que tinham terrenos rústicos que de repente passaram a valer fortunas! Passam a valer fortunas porque houve uma câmara ou um governo que decidiu que ali se pode construir. E este enriquecimento não é apropriado pelo poder público, é apropriado pelo privado.
Acha que estamos no limiar do redesenho do mapa partidário português?Não sei se isso vai acontecer. O que eu sinto é que estamos no limiar de um grau de abstenção para cima de todos os máximos, e é isso é perigoso para a democracia. Estou muito apreensiva, porque acho que há condições de revolta social, desencanto com os partidos políticos e crise, pessoas que estão a viver muito mal. A mistura destas três condições é perigosa.
Acha importante que a estabilidade seja garantida com uma nova maioria absoluta, seja ela de quem for? As duas experiências que tivemos de maiorias absolutas em Portugal, desde o 25 de Abril, foram com Cavaco Silva e com José Sócrates e ambas caíram em erros, aliás, muito parecidos, que são um certo tique de que "já que temos a maioria absoluta a razão está sempre do nosso e, portanto, não aceitamos absolutamente nenhuma convergência nem nenhuma colaboração das outras forças políticas". Eu acho isto um tique autoritário e arrogante. E são as duas palavras que se usaram relativamente a Cavaco Silva, quando ele era primeiro-ministro, e são as duas palavras que estão a surgir relativamente a José Sócrates. Isto é negativo. Esta ideia de que precisamos de ter quem mande é uma ideia salazarenta. Precisamos de pessoas que saibam decidir, com certeza, mas há formas de decidir mais alargadas e mais abertas. A grande referência mundial para essa nova forma de agir é o presidente Obama. Ele tem estado a fazer um grande esforço para conseguir ter alguma convergência - e tem sido muito criticado pelos seus apoiantes por isso. À minha pequeníssima escala, que é a cidade de Lisboa, estou sempre a procurar soluções em que o conjunto dos lisboetas se possam rever. Isso, para mim, é mais importante do que se saber que se está deste lado ou daquele.
Vê medo também na sociedade portuguesa? Vejo medo, mas não é o medo da polícia. Vejo o medo do futuro, muita insegurança, e medo de tomar posições que possam comprometer esse futuro.
Medo de desagradar ao chefe? Muitas vezes. As pessoas querem não fazer ondas, porque não fazendo ondas não têm problemas. Há muito pequeno autoritarismo instalado em Portugal. Quer no público, quer em algumas empresas, há muitos pequeninos autoritários convencidos que mandam só porque têm um lugar de chefia. E tratam mal as pessoas! Eu posso falar da câmara de Lisboa onde tenho conhecido casos desses. As pessoas foram maltratadas com mudanças de vereação, e é uma das coisas que afecta também a política em Lisboa: muda a vereação, mudam as políticas. Vêm de novo, muda tudo outra vez. E as pessoas que colaboraram com os anteriores, muitas vezes, são maltratadas. Isto é inadmissível! Quem está no Estado, ou numa câmara, tem que trabalhar com todos!
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