tribuna socialista

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

A ETERNIDADE DE UM ANDARILHO ...

(Zeca Afonso em Azeitão, em Maio de 1985. Retirado de "Galiza a José Afonso")


Já foi há 18 anos que Zeca Afonso partiu ... É impressionante como esta data passa em branco olhando para a principal imprensa. Estão todos muito ocupados com o rescaldo das últimas eleições ...

Jorge Caetano relembra a eternidade de um andarilho...

A Eternidade de um Andarilho

Escrevia assim Viriato Teles, já lá vão vinte anos inculcados na nossa memória, e jornal Sete:
« Provavelmente, o mundo está mesmo às avessas! Anda um tipo como este Zeca a vida inteira a dar a voz e o corpo pelas causas dos outros, passam-se anos a fio de viola às costas a cantar as utopias sonhadas no dia- a – dia, e acaba tudo assim. Estupidamente, numa madrugada de chuva indecisa, como se nada tivesse acontecido antes, como se todo o passado não fosse um sonho longínquo
No entanto todos nós, que crescemos embalados pelo Menino de Oiro, pelo Vampiros ou pelo Natal dos Simples, que vivemos o êxtase colectivo da utopia e da esperança consubstanciadas em Grândola Vila Morena, ou em Venham mais Cinco, sabemos que é necessário guardar com um carinho especial o sentido das emoções e dos encantos profundos que o Zeca nos suscitou. Mas sabemos também, e para lá de tudo, que urge, nos tempos complexos que vivemos, tempos de recuo, de estrangulamento dos direitos daqueles que trabalham, das mulheres e jovens que são lançados para a sarjeta da sua existência social, manter viva sem hipocrisias, sem «proclamar hossanas em sua glória», o verdadeiro sentido da acção ética e cívica do Zeca. Esta traduz, e de um modo urgente deve projectar, para as gerações mais jovens, o símbolo mais autêntico e genuíno de tudo aquilo que se pretendeu construir nos «anos quentes» do processo revolucionário: a inquietação permanente face à desigualdade social, a denúncia implacável da injustiça e de todo o tipo de discriminações.
O legado de Zeca é provavelmente representa o que melhor materializa o espirito de Abril. Não se pretende com isto ter pretensão de ser hegemónico em relação ao verdadeiro significado do 25 de Abril: temos a consciência de aquele se fez de modo essencial para concretizar uma ambição essencial do Zeca: desmascarar «essa cambada engravatada e escolopêndrica» que continua a ser cada vez mais aqueles que de facto nos controlam, e materializar a possibilidade de ver realizada a «cidade sem muros nem ameias, com gente igual por dentro, gente igual por fora.»

Já perdi a esperança, por medo de cair na banalidade, de denunciar o modo como os poderes públicos, as estações públicas e privadas da televisão têm vindo a lidar com a memória cultural, cívica e política do Zeca. De facto já há mais paciência para a denúncia. Se no dia da sua morte me insurgi contra a hipocrisia que rodeou todos aqueles que fizeram a descoberta súbita de que o Zeca afinal era um democrata e um antifascista, hoje passados quase vinte anos sobre a sua morte perdi a paciência, ou dito de outro modo, interiorizei definitivamente a consciência que o que resta, e isto não é pouco nem fácil de concretizar, é denunciar uma sociedade que promove a sedução pelos «ouropapéis» e encantamento pelas «trombetas da fama». Face ao consumismo exacerbado, à «opulência decadente» que vigora, resta-nos, na esteira da memória do Zeca, fazer cumprir a dignidade com que o cantor sempre nos habitou: trata-se de resistir «aos encantos do poder e arredores.» Embora tenham comido tudo ou quase tudo, os vampiros não vão de certeza conseguir digerir o sonho que ainda comanda as nossas vidas.
Quero deixar ainda uma mensagem do Zeca aos mais novos, para os ajudar a compreender o modo como o regime fascista penetrava também no âmago dos afectos e dos desejos : «Eu sou do tempo em que os polícias andavam pelos jardins a ver quais os parzinhos enlaçados para lhes pedirem a identificação e os levarem para a prisão. É importante que estes putos novos saibam que o fascismo não era só um sistema político, mas que era também um modo de vida que nos envenenava a todos e conspurcava aquilo que havia de mais caro, mais imediato em todos nós....E que este tipo de «permissividade» que, apesar de tudo se vive hoje e a naturalidade com que hoje se encaram coisas que eram consideradas grandes pecados são dados resultantes do 25 de Abri.»

Finalizo esta modesta homenagem ao Zeca Afonso parafraseando Viriato Teles: « Olha lá, aqui mesmo a dois passos desta mesa de te recordo, há um pássaro a recolher-se da chuva que, teimosa vai caindo. Ou serão lágrimas? Seja como for, o pássaro é igualzinho a ti: por mais que tentem, ninguém consegue impedi-lo voar
Obrigado Zeca! Posted by Hello

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